Uma imagem de satélite sempre será uma escolha entre várias possibilidades
Carmem Marques Rodrigues
Museu Histórico e Geográfico Comendador Sebastião de Sá, Brasil | GEOPAM
Frontispício de uma tradução alemã de 1659 da história de Francis Godwin (1562–1633), The Man in the Moone, imagem intervencionada pela equipe da Canoa
(...)
Mas se a Melpómene deixo,
Muitas vezes contemplando
Com Newton no vasto espaço,
Vejo os astros gravitando
No vácuo, presos ao eixo;
Do inglês o justo compasso
Trocar-lhes a Elísia meta
E refrear do cometa
O indómito furor.
Já na sua mão triunfante
Nos reinos tristes de Eolo
Mede a terra, abaixa o pólo,
Move o orbe e a Lei constante
O demonstra ao Navegante
Mais alto no Equador. (...)
Epístola a Glicera, Luís Pinto de Sousa Coutinho, Visconde de Balsemão.
No final de 2022 foram registrados cerca de 26 mil satélites artificiais orbitando a Terra. Essa incrível quantidade de objetos feitos e lançados pelo homem ao espaço é composta por artefatos dos mais variados fins e tamanhos, construídos para estudos científicos, para as telecomunicações e, inclusive, para fins militares. E grande parte desses objetos podem ser rastreados em tempo real por meio de aplicativos e sites específicos.
O meteórico desenvolvimento dos satélites artificiais, a partir da década de 1950, transformou em realidade aquilo que era apenas um sonho para Kepler e Newton. Em 1634, veio a público um escrito póstumo de Johannes Kepler (1571-1630) intitulado Somnium. O enredo do texto é uma defesa do heliocentrismo, por isso traz vários elementos das teses do próprio Kepler, mas o cenário principal é a descrição de uma viagem até a Lua. Já em 1687, em sua obra Principia Mathematica, Isaac Newton (1642-1727) dissertou sobre a possibilidade de se pensar em satélites artificiais, tendo como princípio o funcionamento da Lei da Gravitação Universal. Afinal, dizia Newton, “se o corpo for projetado em direções paralelas ao horizonte, de grandes alturas, dependendo de sua velocidade inicial e da força da gravidade na altura em que está, ele descreverá círculos concêntricos ou elipses e permanecerá girando nessas órbitas celestes do mesmo modo que a Lua gira em torno da Terra e os planetas giram em torno do Sol”.
Em outubro de 1957, a Sputnik-I, desenvolvida pelo programa espacial soviético, teve sucesso ao ser o primeiro satélite artificial tripulado por um humano posto em órbita ao redor de um corpo celeste, a Terra. Após 270 anos da publicação original de Newton, o homem finalmente alcançou o espaço.
Segundo Raphael Bluteau, em seu Vocabulário Português e Latino de 1728, a palavra Satélite deriva de “Satelles, que em Latim era o mesmo que Guarda, [aquele] que assiste aos lados de um Príncipe”. Guiados por essa relação original que “tomaram os astrônomos motivo para chamar Satellites de Júpiter às quatro estrelas descobertas por Galileu”. O êxito soviético demonstrou que o homem poderia, finalmente, conquistar o espaço com seus próprios “guardas” e, além disso, utilizá-los como instrumentos para conhecer visualmente a Terra. Foi isso que o geógrafo inglês Roger Tomlinson (1933-) desenvolveu, ainda de forma incipiente, em 1962. Ele percebeu que era possível usar a Tecnologia da Informação para converter formas e imagens em números e assim criar imagens geográficas digitais, ou seja, mapas digitais.
A partir da década de 1970, o desenvolvimento de satélites de observação da Terra capazes de gerar imagens digitais sofreu um crescimento exponencial, culminando no aparecimento de aplicativos geoespaciais como o Google Earth. Todavia, como alerta J. B. Harley os mapas, mesmo aqueles feitos com tecnologia da informação, são produtos políticos e culturais, frutos de determinadas escolhas e interpretações. Nesse mesmo caminho, Ricardo Castillo adverte para o perigo da “velha alegação de que a precisão do instrumento confere legitimidade científica ao conhecimento produzido”.
Para ter significado, uma imagem de satélite precisa passar por um duplo processo: o tratamento e a interpretação. Nesse sentido, ela sempre será uma escolha entre várias possibilidades.
Para os curiosos
Podem ler mais sobre as referências mencionadas em:
☞ Ricardo Castillo. “A imagem de satélite: do técnico ao político na construção do conhecimento geográfico”, Pro-Posições, Campinas, v.20, n.3 (60), p.61-70, set./dez. 2009.
☞ J. B. Harley. “The New Nature of Maps. Essays in the History of Cartography”. The Johns Hopkins University Press, 2001.
☞ Jair L. P. Ribeiro. “O Sonho de Johannes Kepler: uma tradução do primeiro texto de hard sci-fi”, Revista Brasileira de Ensino de Física, vol.40, n.1, e1602 (2018).
Sobre a autora
Moro nas montanhas de Minas Gerais, talvez por isso a astronomia e a geografia sempre me fascinaram. Estudei História e Filosofia e recentemente concluí meu doutorado em História da Ciência no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. Concentro meus estudos na História dos Mapas, uma temática multidisciplinar por natureza, sobre a qual gosto de falar nas redes sociais. Podem me achar no Twitter/X como @CarmemMarx e no Instagram: @historiaecartografia.
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