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A MEDIDA DAS LONGITUDES: EMBATES NA TERRA DE PAPEL

A geopolítica escrita nos astros.


Junia Ferreira Furtado

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil | GEOPAM


Cópia da dissertação geográfica de Guillaume Delisle sobre as longitudes guardada na Torre do Tombo, em Portugal, possivelmente realizada a mando do rei dom João V. Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, fundo Condes de Linhares, mç. 2, doc. 23.



A partir da primeira metade do século XVIII, vários empreendimentos de natureza científica foram realizados pelas elites intelectuais europeizadas, em diversas partes do globo e, entre eles, destaca-se o desafio de medir com mais precisão as longitudes, sendo que as academias de ciências foram importantes loci desse debate. Entre elas, destaca-se a Académie Royale des Sciences de Paris. Fundada em 1666 por Luís XIV, esta instituição científica dispunha de um observatório astronômico, o Observatório de Paris, que, nos primeiros 125 anos, foi dirigido por membros da família Cassini. A questão das longitudes esteve associada à discussão sobre o formato da Terra, ao estabelecimento do meridiano de Paris e à produção da nova Carta da França. Ainda que, desde a disseminação do telescópio como instrumento astronômico, iniciada Galileu Galilei (1564-1642), os cosmógrafos esquadrinhassem os céus estudando seus astros errantes, as modernas lunetas desenvolvidas no alvorecer do século XVIII permitiram que as observações se tornassem mais precisas e a Académie e seu observatório ocuparam papéis destacados no aperfeiçoamento dos chamados “instrumentos matemáticos”. Tais inovações permitiram observar os regulares eclipses das luas de Júpiter e tomar medidas mais precisas daqueles da nossa própria Lua ou de ocultações de Vênus, resultando no estabelecimento de longitudes matematicamente mais exatas. A década de 1720 foi o ápice dos debates sobre as longitudes e o tema ocupou várias seções da Académie francesa. A 31 de dezembro de 1721, por exemplo, ocorreu, em pleno dia, uma ocultação de Vênus pela Lua. Nos seus relatórios foi registrado que o evento “seria marcante, porque Vênus devia passar quase vis-à-vis o centro da Lua, e deverá ser longo e durar uma hora e quarto”, muito útil para estabelecer novas medidas do Meridiano de Paris. Assim, a 17 de abril de 1722, Jacques Cassini (1677-1756), diretor do Observatório, relatou as observações que realizou deste fenômeno e de muitos eclipses dos satélites de Júpiter, além de composições da Lua e de outros planetas em relação às estrelas fixas. Também nesse período foram lidas as observações realizadas recentemente em outros países, como a que foi feita de um eclipse da Lua, em 1723, em Lisboa, no novo observatório criado por dom João V junto a seu palácio, no Paço da Ribeira, que serviu para reposicionar o meridiano de Lisboa.


Fato marcante ocorreu a 27 de novembro de 1720, uma quarta feira, quando Guillaume Delisle (1675-1726), “primeiro geógrafo do rei”, leu na Académie uma memória escrita a partir das recentes medidas tomadas das longitudes, utilizando dados recolhidos com as técnicas mais modernas de medição astronômica, especialmente os dados recolhidos pelos Cassini enquanto estabeleciam, por triangulação, o meridiano de Paris para produzir a Carta da França. Delisle fez acompanhar sua memória de um mapa mundi e nele, entre inúmeras mudanças, reposicionou os meridianos, como os da Ilha de Ferro e de Paris, utilizados como meridianos primários por diferentes geógrafos em seus mapas. Seu impacto foi sentido para muito além das paredes da academia parisiense, transformando toda a arte da cartografia, já que provocou uma reorientação na disposição dos continentes pelo globo. Para Portugal e Espanha, as consequências foram imediatas, pois o reposicionamento do Meridiano de Tordesilhas, que regulava as divisões dos seus territórios no Ultramar, gerou guerras e disputas diplomáticas entre ambos que transcorreram ao longo de todo o século. De fato, a transformação na representação geográfica da Terra vinha sendo tamanha que, diz a anedota, Luís XIV já lamentara no fim do século XVII que os geógrafos, com suas medidas acuradas de longitudes e em pouco tempo, fizeram a França perder mais territórios do que seus inimigos ao longo de muitos anos e em sucessivas guerras.




Sobre a autora

Nasci em Belo Horizonte, onde fiz minha graduação em História na Universidade Federal de Minas Gerais. Depois do mestrado e doutorado em História Social na Universidade de São Paulo, me tornei professora de História Moderna e até hoje atuo na pós-graduação da UFMG. Meu interesse é o século XVIII e comecei estudando a capitania de Minas, especialmente a região diamantina. Minhas pesquisas em História das Ciências, principalmente em História da Cartografia, foram alargando esse círculo espacial e, hoje, trabalho histórias conectadas entre a América, a Europa e a África. Nas horas vagas pratico esportes: muitos e vários, mas minha paixão atual é a mountain bike — e as montanhas mineiras são irresistíveis e desafiantes. É entre os livros, os documentos, o computador, a bicicleta e uma raquete de tênis que me divirto no meu dia-a-dia.








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